Vai, vai, vai, disse o pássaro:
o gênero humano Não pode suportar tanta realidade. (Eliot, 1967)
O impacto da infertilidade nos casais que desejam ter filhos chega, na maioria das vezes, como uma avalanche de sentimentos que, para muitos pacientes, gera reações emocionais intensas e impactantes na saúde física e, também, na psíquica, provocando uma grande carga de sofrimento. O desejo da concepção é conscientemente sustentado pela ampla disponibilização de técnicas reprodutivas, as quais, às vezes, não correspondem ao esperado tanto pelos médicos quanto pelos pacientes. Diante disso, psicólogos e psicanalistas são solicitados no auxílio da elaboração desses sentimentos.
A contribuição dos profissionais de saúde mental a esse tipo de tratamento é justificada na medida em que os pacientes podem precisar de um auxílio para constituir-se como pais, sobretudo nos casos em que, para a concepção ou a gestação da criança, faz-se necessária uma doação de sêmen, de óvulo ou de embrião, ou, ainda, o recurso do útero solidário.
Os avanços da ciência têm efeito sobre a realidade psíquica, podendo promover novas representações e/ou dar contornos de realidade ao mundo fantasmático. Cada uma dessas demandas, no entanto, comporta armadilhas com fantasias que constituem esforços simbólicos e imaginários de apaziguamento das invasões inassimiláveis do real, possibilitando a formação do laço social. Uma dessas frequentes armadilhas aparece quando a infertilidade não tem causa 2 aparente, trazendo uma alta dose de culpabilidade em algumas pacientes, que se somará à já frequente presença da culpa experimentada por toda mulher que se vê impossibilitada de gerar um filho.
Utilizarei aqui algumas vinhetas de pacientes com o objetivo de fazer compreender o potencial desse signo de gerar sentidos. Uma paciente, inclusive, iniciou um desenrolar das possíveis causas de sua infertilidade, buscando uma justificativa até mesmo no castigo divino. “Sem causa aparente? Não posso ter um filho agora porque estou sendo castigada pelo aborto que fiz na minha adolescência”. (F. C. A., comunicação pessoal, 01/2020)
Verifica-se, nesse caso, que a infertilidade pode ser vivida como um tipo de punição que, provavelmente, apresente o caráter de um julgamento do superego. Uma das representações presentes na concepção é a realização narcísica de transmitir a herança genética para futuras gerações. O desejo de conceber pode ter significados históricos e atuais para o casal. “… uma nova vida nunca está livre de antigas inscrições …”. (Abelin-Sas, 1992, p. 29)
Atualmente, as novas técnicas de medicina reprodutiva podem estimular ou dar concretude a vários tipos de fantasias. O que antes dependia de um ato sexual agora pode ser substituído pela tecnologia. A constituição de famílias por meio de reprodução assistida tem levantado diversas preocupações sobre consequências potencialmente adversas em relação aos relacionamentos conjugais, formas diferentes de constituir uma família e a concepção de filhos. Surgem então, várias fantasias, como a ausência da relação sexual para conceber um filho, a não participação de um dos parceiros e até mesmo a ausência de ambos. Freud (1919/1980) afirma que a fantasia surge em análise como um relato hesitante e acompanhado de vergonha e culpa, mobilizando resistência. Nessas considerações de Freud, chama a atenção o fato de a fantasia portar um paradoxo: gera prazer, mas é também repugnante. Dito de outro modo: na fantasia, o prazer está articulado ao desprazer.
O IMPACTO EMOCIONAL NA RECEPÇÃO DE GAMETAS
Nos casos em que existe a impossibilidade de ter filhos que possam imprimir a herança genética, observam-se algumas problemáticas, como a elaboração do luto de não ter um filho biológico e a ausência da ambivalência e/ou inexistência de sentimentos negativos sobre a gravidez e a maternidade. Nesses casos, ou seja, 3 quando os pacientes necessitam de uma recepção de gametas, surgem fatores que favorecem ou obstaculizam a possibilidade de legitimar-se como mãe/pai.
No relato de uma paciente, sua concepção foi entendida como um milagre divino, ou seja, ela ignorou, a seu modo, a técnica reprodutiva e a recepção de um óvulo doado, substituindo a vivência de um fracasso orgânico por uma convicção religiosa. Percebe-se, então, que várias fantasias se fazem presentes neste contexto, regulando, de diversas formas, a relação do sujeito com a realidade. Seria esta uma tentativa de preencher o gozo perdido, construindo-se essencialmente como fantasia de completude.
Abraham de Cúneo (1997) questiona-se sobre a diferença de ser pai ou mãe quando uma dessas pessoas não é o pai ou a mãe biológica. A isso, acrescentamos outra pergunta: se chegarmos à conclusão que sim, é distinto, pode-se aceitar essa diferença sem outorgar-lhe um sentido negativo? Cabe aqui investigarmos que tipos de mudanças, complexidades, fantasias e conflitos aparecem nas configurações vinculares de famílias nascidas com o auxílio das técnicas de reprodução assistida, em específico na recepção de gametas. Qual o significado do desejo de ter um filho.
Para a psicanálise, tanto faz se o sujeito é ou não geneticamente filho de seus pais: o que conta é a sua inscrição num desejo que não seja anônimo. O lugar da fantasia no aparelho psíquico tem por função primordial produzir uma satisfação que, se por um lado é negada na realidade, por outro, continua a ser exigida pela pulsão — conciliação, portanto, de dois imperativos antagônicos: o do pulsional e o da realidade.
Coutinho (2010) faz questão de acentuar dois polos: de um lado, o polo inconsciente, o sujeito constituído pela linguagem e por ela mesma barrado em sua completude; de outro, o polo pulsional, com o elemento que se inscreve na fantasia como o mais-gozar. Com essa construção, postula ele que, em última instância, a fantasia é sempre de desejo de completude, constituída em torno de dois polos diferenciados: amor e gozo.
Uma paciente, diante do diagnóstico da infertilidade, relatou o seguinte: Após inúmeras tentativas sem sucesso com meus próprios óvulos, meu médico disse que minhas chances de ter um filho “meu”, biológico, é de 5%. Hoje tenho 43 anos, mas ainda tenho óvulos. Não aceito ter um filho de outra 4 mulher, e ainda bem mais nova que eu. Na realidade, o filho será dela e do meu marido. Mas doutora, quero tanto um filho! (K. P, comunicação pessoal, 10/2019)
Através dessa fala, é possível observar a tentativa desta mulher de desconhecer a disfunção orgânica (idade) e a carga genética que é identificada como um questionamento à sua maternidade. Por trás da fala “quero tanto um filho”, muitas outras demandas e anseios podem se esconder. Percebe-se de modo evidente que, para essa paciente, “óvulos alheios” não é algo irrelevante. Além de representar uma ameaça à sua juventude, também significa uma traição conjugal, constituindo uma realidade sob a forma de um juízo que rompe o seu equilíbrio narcisista dando consistência à fantasia neurótica.
Isso nos leva a refletir sobre a importância clínica do efeito de sentido real, ao qual Lacan se refere no terceiro momento do seu ensino, prolongando a reflexão sobre a cura para além da travessia da fantasia, ou seja, para além dos efeitos de sentido simbólico e imaginário.
O PSICÓLOGO NO ACOMPANHAMENTO DO PROCESSO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Já são conhecidas as interfaces mente-corpo, e, diante disso, o trabalho multidisciplinar é de fundamental importância. Hoje existe, ainda, muita resistência dos casais na procura de um profissional de saúde mental, pois eles subestimam os impactos emocionais ao longo do tratamento e protelam essa
procura por um acompanhamento psicológico. Traduzir em palavras esses sentimentos tão dolorosos que, por vezes, vêm se estendendo há anos e, provavelmente, após diversos tratamentos, torna-se algo muito penoso. A indicação dos outros profissionais da equipe de saúde, no entanto, é determinante para a aceitação desse acompanhamento, facilitando-o ou dificultando-o.
Em outra situação, uma paciente fez a si mesma o seguinte questionamento: Quando meu médico me indicou para uma psicóloga, percebi que eu era uma paciente problema, devia estar dando muito trabalho a ele, tentei por 5 quatro anos engravidar naturalmente e já havia tentado duas FIVs, chorava muito nas consultas, reclamava a ingestão dos medicamentos e me senti mais uma vez incompetente, nem com as minhas emoções sei lidar? (F. G., comunicação pessoal, 12/2019)
Pode-se observar, nessa fala, o estigma e a resistência que ainda existe na procura de apoio psicológico e o quanto essa paciente estava devastada por uma exaustão de tentativas sem sucesso. A perda da fertilidade pressupõe um luto e pode ser vivida em diferentes momentos: quando se descobre que a gravidez muito provavelmente não acontecerá sem tratamento; quando há insucessos nos tratamentos; ou, ainda, quando a gravidez é interrompida pelo aborto.
A função do acompanhamento psicológico é oferecer um lugar de escuta para os pacientes, breve, algumas vezes, mas, em outras, estendendo- se para além das questões reprodutivas, atravessando as fantasias sem querer eliminá-las como uma pedra nos rins, e sim percorrê-las para que o sujeito possa experimentar-se através da linguagem que não visa apenas “realizar um sonho que parece impossível”, mas a prática de um “discurso (laço social) que não seria o de um semblante” (Lacan), um discurso que toca/perturba o Real.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O título deste artigo nos propõe uma provocação, um desafio para o nosso olhar, e os imprevistos da nossa escuta. As fantasias na infertilidade são armadilhas que alguns pacientes utilizam como defesas e para produzirem sintomas, que sustentam, ao mesmo tempo, a ilusão de uma relação de completude.
Uma provocação? Que a fantasia não se opõe exatamente à realidade. Ela organiza a realidade do sujeito, assim como dá o ponto de vista a partir do qual alguma verdade possa ser enunciada sobre o mundo, ou seja, o encontro com o real.
Um desafio? O mais importante: tratar uma vida (paciente) com a singularidade que lhe é pertinente, com o olhar ético que indica que o caminhar
desse processo pode ter desfechos dolorosos, mas pode ter, também, descobertas 6 de que o desejo não é o que se sustenta. Uma escolha, com o princípio da responsabilidade.
Os imprevistos? Para o paciente, o psicanalista assume o lugar do imprevisto, sempre presente, que Lacan chamou de Real. Não é a realidade, previsível, esperada, de perguntas e respostas programadas, que podem nos satisfazer ou não, mas que já conhecemos, e de juízos comuns, um certo e errado um bom e mal pré-determinados. O Real não se ausenta. Ele está sempre lá porque ele é a falha da realidade. Ele aparece como angústia, que não é a simples insatisfação com a ausência de algo; e aparece no amor – materiais da psicanálise. (Forbes, 2005)
Referências
Abelin-Sas, G. (1992). To mother or not to mother: abortion and its challenges. Journal of Clinical Psychoanalysis, 1(4).
Abraham de Cúneo, L. (1997). Fecundacion assistida y familias uniparentales. Actualidad psicológica, 241.
Coutinho, J. M. A. (2010). Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 2).
A clínica da fantasia. Rio de Janeiro: Zahar.
Eliot, T. S. (1967). Quatro quartetos. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
Freud, S. (1980). O estranho. In J. Salomão (Ed. & Trad) Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 275-314). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).
Forbes, J. (2005, outubro). A presença do analista. Conferência de inauguração do website do Instituto da Psicanálise Lacaniana, São Paulo